sábado, 14 de agosto de 2010

Teses de Filosofia da Religião Elementos para a fundamentação metafísica do fenômeno religioso

A indagação filosófica a respeito da experiência religiosa lança suas raízes no profundo da consciência humana. A filosofia da religião encontra aí sua justificativa racional e existencial.
O que se propõe aqui é um conjunto de teses que poderiam servir de itinerário de reflexão filosófica sobre a religião. A forma de teses procura, antes de tudo, oferecer os elementos fundamentais de um enfoque mais sintético e ao mesmo tempo mais amplo do tema, quando se vê que, muitas vezes, a filosofia da religião se tem limitado seja a aspectos críticos, seja a aspectos fenomenológicos.
Se a atitude do pensador procura mostrar o que a religião não é, suas teses são sobretudo críticas. Se ela procura dizer o que a religião é, o faz ou de modo descritivo ou genético, ou seja, especulativo. No primeiro caso, temos uma fenomenologia; no segundo, uma metafísica da religião.
As teses aqui desenvolvidas seguem, pois, três perspectivas convergentes: a crítica, a fenomenológica e a metafísica. Somente o último grupo parece problemático para a filosofia. Contudo, no âmbito tomista, é necessário reconhecer que o fundamento da investigação filosófica sobre a religião supõe, antes, o caminho metafísico, que, em última instância, nos conduz ao estudo do ser. É, portanto, em vista dessa perspectiva metafísica que se apresentam as teses que se seguem.


Crítica da Religião

Por crítica, entende-se aqui o juízo de apreciação sobre determinado aspecto do conhecimento humano. Pode-se dizer que a crítica da religião remonta à própria origem da filosofia, todavia, depois de Descartes, ela ganhou contornos sistemáticos e tornou-se hoje elemento imprescindível para a compreensão do fenômeno religioso.

Teses críticas

I. A filosofia é ciência divina. E isto por duas razões: porque é própria de Deus e porque concerne ao divino . E divino é o princípio, completa o Estagirita, princípio que os antigos chamavam de arkhé e que os modernos chamam de fundamento (Grund). Assim, independentemente do pluralismo filosófico, a filosofia continua sendo a ciência da reflexão radical, dos fundamentos. De fato, não se pode pensar nada profundamente sem a filosofia. A busca de fundamento e de unidade é apanágio da filosofia.


II. A religião também é radical, mas vivência radical. Tem objetos que religiosamente não podem ser chamados de objetos, por ultrapassarem os limites da razão. Ademais, a religião nunca é exclusivamente racional, mas também não é irracional. A religião atinge a existência em sua totalidade. A transcendência e o mistério, em sentido existencial, são propriedades características da religião.

III. A filosofia da religião procura conjugar essas duas radicalizações, para oferecer ao homem as justificativas racionais da sua fé, integrando assim ciência e vida religiosa. O homem religioso tem um modo especial de estar no mundo, o que provoca a indagação do filósofo. Toda crítica religiosa nos oferece um caminho oportuno para purificar a religião de qualquer ingenuidade filosófica, do mesmo modo que nos leva a evidenciar, embora por processo negativo, o que lhe é específico e irredutível. Justamente por isso, impõe-se a reflexão sobre os elementos constitutivos do ato religioso.

IV. Assim sendo, tornam-se essenciais, para a filosofia da religião, as críticas modernas: primeiramente, a de Spinoza, na medida em que reduziu a religião à educação moral dos ignorantes; e, em seguida, a de Kant, porque, acentuando a postura spinozista, deu-lhe o estatuto de sua crítica . Em outras palavras, da imanência dogmática em Spinoza passamos à imanência crítica em Kant.

V. A filosofia da religião contemporânea depende sobretudo das premissas romântico-idealistas do século XIX. Essenciais são, portanto, as críticas de Hegel e de Schleiermacher. Aqui a crítica parte de um elemento fundamental, o princípio da ação: o espírito é dinâmico, e a idéia do princípio dinâmico da espiritualidade, que tem sua origem em Leibniz, guia tanto Hegel como Schleiermacher.

VI. Em um segundo momento da filosofia contemporânea, outro grupo de pensadores torna-se a referência negativa mais radical à religião: Feuerbach, Marx e Nietzsche. Feuerbach abriu o caminho da crítica da religião como alienação. Marx dá ao tema um tratamento econômico de natureza materialista-dialética, que justamente funda sua eficácia na cientificidade de seu sistema. Nietzsche torna-se mais radical do que Marx, na medida em que se liberta até mesmo dos modelos racionais e culturalmente cristãos presentes no pensamento marxista.

VII. Na linha de uma recuperação do valor religioso, aparecem como autores essenciais: Kierkegaard, que consegue reconduzir a religião à sua dimensão existencial; e, na Fenomenologia , Max Scheler, que, embora essencial, não é o único nesta importante corrente do pensamento contemporâneo. Na verdade, a filosofia da religião não somente incorpora as críticas fenomenológicas mas sobretudo começa daqui sua parte construtiva, positiva.



Fenomenologia da Religião

Por fenomenologia pretende-se indicar sobretudo a descrição de um fenômeno, o fenômeno religioso, ou seja, trata-se de mostrar como a religião aparece à consciência, a sua essência enquanto presente no pensamento.
Os aspectos fenomênicos da religião foram descritos por Mircea Eliade principalmente em O Sagrado e o Profano, que, por sua vez, se inspira na obra de Rudolf Otto, O Sagrado. O homem das sociedades tradicionais, observa aquele historiador, vive em um mundo sacralizado; o das sociedades modernas, em um mundo dessacralizado. Por outro lado, o espaço, o tempo, a religião cósmica e a religião existencial manifestam-se como elementos irredutíveis da experiência religiosa do homem.

Teses fenomenológicas

VIII. Para o homem religioso o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente distintas. Esta dimensão alia-se à percepção religiosa do tempo.

IX. O tempo também não é, para o homem religioso, nem homogêneo nem contínuo: há um tempo sagrado e um profano. O tempo sagrado é, por natureza, reversível, isto é, significa a reatualização de um evento sagrado acontecido nos primórdios.

X. Para o homem religioso, a natureza nunca é exclusivamente natural: está carregada de valor religioso. A natureza dessacralizada é descoberta recente, acessível apenas a uma minoria das sociedades modernas, especialmente cientistas. Quando Spinoza identifica Deus com a Natureza, tudo se torna natural.

XI. A existência do homem religioso é “aberta” para o mundo; vivendo, o homem religioso nunca está sozinho, pois ele participa do mundo. A abertura para o mundo permite ao religioso conhecer-se conhecendo o mundo – e esse conhecimento é precioso para ele, porque é conhecimento religioso, refere-se ao Ser. Essa abertura ao ser é o caminho da santificação da existência humana.

XII. Os sem-religião, em sua maioria, não estão, propriamente falando, livres dos comportamentos religiosos, das teologias e das mitologias. Estão, às vezes, entulhados por todo um amontoado mágico-religioso, mas degradado até a caricatura e, por esta razão, dificilmente reconhecível. Jung nos mostra que é impossível suprimir a experiência religiosa. Afirma ainda Jung que as tentativas de eliminar a função religiosa geram uma resposta compensatória e encoberta, seja na vida privada, seja na vida social.




Metafísica da Religião

A Metafísica investiga os fundamentos do ente, é o saber do ente enquanto tal. Ora, a busca da causa do fenômeno religioso é a metafísica da religião. Para explicá-lo, a Metafísica oferece-nos muitos princípios, mas todos eles deveriam conduzir ao ser como fundamento do ente. O ser que emerge como ato, e, portanto, como ato de todo fenômeno, é o princípio que funda a metafísica da religião.

Teses metafísicas

XIII. Pode-se então demonstrar que o homem é naturalmente religioso. O homem realiza atos que são estritamente religiosos (pelas teses VIII-XI), ou seja, irredutíveis a qualquer outra manifestação humana. Ora, como todo efeito há de ter uma causa proporcionada, deve-se concluir que o homem é naturalmente religioso. Ademais, o homem tende, por natureza, ao Sumo Bem, que é Deus, objeto da religião. Como nenhuma tendência da natureza pode ser frustrada pela própria natureza, deve-se dizer que o homem tende a Deus e, conseqüentemente, à religião.

XIV. A religião é a santificação da vida, por isso sempre inclui uma ética, embora a ultrapasse. A vida como um todo é suscetível de ser santificada: é imanente e transcendente, como o próprio Ser e a vivência que dele temos. A vida, enquanto desenrolar da existência humana, é participação que transcende a própria imanência em que ela se encontra. Na busca da santidade perdida e de uma nova salvação para o homem, erra Spinoza, quando unifica o real através da imanência do ser, porque a santidade é a aplicação que a alma faz de si mesmo, de seus pensamentos, de todos os seus atos a Deus , portanto supõe a transcendência.

XV. A religião se manifesta pelo culto, tanto externo como interno. Assim, a riqueza do culto exprime a riqueza das vivências e da própria manifestação divina. Mas a religião, segundo Santo Tomás de Aquino, tem como atos principais seus próprios atos internos e como secundários, os atos externos, ordenados aos internos.

XVI. O homem profano descende do homo religiosus e não pode anular sua própria história. Ademais, não existe um homem totalmente profano, conforme o já citado Mircea Eliade. Um homem exclusivamente racional também é uma abstração: jamais o encontramos na realidade. Sua abertura ao Infinito resiste a qualquer reducionismo racionalista. São significativas neste momento as palavras de Kant, no final da Crítica da Razão Prática: “Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais freqüentemente e com maior assiduidade delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim.” Se a ciência pode avançar, e tem avançado muito, sua dependência do mundo sensível é o seu limite; em contrapartida, a moral, embora avance lentamente, nela se descortina o Infinito, que se apresenta como ulterioridade. Aqui está a diferença, em matéria religiosa, entre tomismo e kantismo.



Conclusão

Os elementos apresentados como tópicos de uma filosofia da religião que reconheça a metafísica como ciência das causas primeiras supõem o ser como fundamento do ente. Mesmo admitindo-se uma diferença entre o método fenomenológico, que domina a pesquisa filosófica no panorama contemporâneo, e a investigação metafísica, o tomismo absorve a maioria das considerações da Fenomenologia na descrição dos fenômenos. A possibilidade de sintetizar posturas aparentemente antagônicas é, também neste caso, um desafio para a filosofia. Ora, a possibilidade de toda síntese está na descoberta de um princípio anterior aos elementos que se opõem. Em si mesmo, isso não é tarefa fácil e que se torna imponente quando deve ser transferida para o plano conceitual que a filosofia exige:

"Os dois, nós procuramos a verdade; tu, fora, na vida; eu, dentro
No coração; e assim cada um está seguro de a encontrar.
Se o olho é são, ele encontra fora o Criador;
Se o coração é sadio, ele reflete interiormente o mundo."

"Wahrheit suchen wir beide, du aussen im Leben, ich innen
In dem Herzen, und so findet sie jeder gewiss.
Ist das Auge gesund, so begegnet es aussen dem Schöpfer;
Ist es das Herz, dann gewiss spiegelt es innen die Welt."

A filosofia contempla a intuição do poeta, mas persegue outro caminho, pois, propriamente falando, a filosofia não intui; a filosofia abstrai, julga, argumenta, e é, por isso mesmo, aproximativa. É o acercamento do ser que se esconde. Todo o restante da investigação humana depende desse acercar-se e esconder-se do ser para nós. Todo fruto positivo do rigor, isto é, toda conquista rigorosa da filosofia, de toda crítica, é, em relação ao ser que se manifesta, mera aproximação: "O ser é o prodígio de todos os prodígios, mas não é um prodígio, porque é o mais evidente. É também o que há de mais profundo, mais insondável porque, para nós, o ente veio de longe e continuamente vem de longe, vem do nada" .




REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ARISTÓTELES, Metafísica. Porto Alegre: Globo, 1969.
BOSSERT, A. Histoire de la Littérature allemande. Paris: Hachette, 1907.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FABRO, Cornelio.Libro dell'esistenza e della libertà vagabonda. Casale Monferrato: Piemme, 2000.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 1989.
_______. Werke in Zehn Bänden. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschft, 1983. Vol. 6.
JUNG, Karl Gustav. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991.
OTTO, Rudolf. O Sagrado. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007.
TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologiae. Roma: Ed. Paulinae, 1962.
VAN DER LEEUW, Gerardus. Fenomenologia della Religione. Turim: Boll. Boringheri, 1992.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Tradução do Comentário de Santo Tomás de Aquino ao Evangelho do XIX Domingo do Tempo Comum, ano C

O Evangelho (Lc 12, 32-48)
Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos:
32'Não tenhais medo, pequenino rebanho,
pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino.
33Vendei vossos bens e dai esmola.
Fazei bolsas que não se estraguem,
um tesouro no céu que não se acabe;
ali o ladrão não chega nem a traça corrói.
34Porque onde está o vosso tesouro,
aí estará também o vosso coração.
35Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas.
36Sede como homens que estão esperando
seu senhor voltar de uma festa de casamento,
para lhe abrirem, imediatamente, a porta,
logo que ele chegar e bater.
37Felizes os empregados que o senhor
encontrar acordados quando chegar.
Em verdade eu vos digo:
Ele mesmo vai cingir-se, fazê-los sentar-se à mesa
e, passando, os servirá.
38E caso ele chegue à meia-noite ou às três da madrugada,
felizes serão, se assim os encontrar!
39Mas ficai certos: se o dono da casa
soubesse a hora em que o ladrão iria chegar,
não deixaria que arrombasse a sua casa.
40Vós também ficai preparados!
Porque o Filho do Homem vai chegar
na hora em que menos o esperardes'.
41Então Pedro disse: 'Senhor,
tu contas esta parábola para nós ou para todos?'
42E o Senhor respondeu:
'Quem é o administrador fiel e prudente que o senhor
vai colocar à frente do pessoal de sua casa
para dar comida a todos na hora certa?
43Feliz o empregado que o patrão, ao chegar,
encontrar agindo assim!
44Em verdade eu vos digo: o senhor lhe confiará a
administração de todos os seus bens.
45Porém, se aquele empregado pensar:
'Meu patrão está demorando',
e começar a espancar os criados e as criadas,
e a comer, a beber e a embriagar-se,
46o senhor daquele empregado chegará num dia inesperado
e numa hora imprevista,
ele o partirá ao meio
e o fará participar do destino dos infiéis.
47Aquele empregado que, conhecendo a vontade do senhor,
nada preparou, nem agiu conforme a sua vontade,
será chicoteado muitas vezes.
48Porém, o empregado que não conhecia essa vontade
e fez coisas que merecem castigo,
será chicoteado poucas vezes.
A quem muito foi dado, muito será pedido;
a quem muito foi confiado, muito mais será exigido!



O comentário de Santo Tomás de Aquino
em glosa com os Padres da Igreja: Catena aurea in Lucam 12, 32-48
[tradução incompleta, por ora somente o início]

A Glosa: Depois de ter banido do coração de seus discípulos a preocupação com as coisas terrenas, o Senhor extirpa daí o medo que é o princípio das inquietudes vãs: “Não temais, pequeno rebanho”. Teofilacto: o Senhor chama de pequeno rebanho aqueles que querem ser seus discípulos, seja em razão da pobreza voluntária que abraçaram, seja porque estão abaixo dos anjos, cuja natureza é incomparavelmente superior à nossa. Beda: O Senhor chama ainda os eleitos de pequeno rebanho, seja em comparação com o grande número dos réprobos, seja ainda por causa do amor dos eleitos pela humildade. Cirilo: Ele lhes mostra a razão que deve banir de seus corações qualquer medo: “Porque aprouve a vosso Pai vos dar o seu reino”. Como se lhes dissesse: como aquele que vos destina tão preciosa herança poderia se recusar de vos tratar com bondade? Pois esse rebanho, por pequeno que seja pela natureza, pelo número, pela glória, contudo foi a ele que a bondade do Pai ofereceu a herança dos espíritos celestes, isto é, o reino dos céus. Se vós quereis possuir o reino dos céus, desprezai as riquezas da terra: “Vendei aquilo que tendes!” Beda: O Senhor quer-lhes dizer: Não temais, porque, ao combaterdes pelo reino de Deus, o necessário nunca vos faltará; vendei mesmo o que tendes, conselho que é nobremente praticado por aquele que, não contente de ter feito, por amor a Deus, o sacrifício de todos os seus bens, trabalha em seguida com suas próprias mãos para satisfazer às suas necessidades e poder ainda fazer esmola. Crisóstomo: Não há pecado que a esmola não possa abolir: é um antídoto eficaz para todas as feridas. Ora, não se faz esmola somente ao se doar dinheiro, mas também por meio de obras de caridade, na defesa do fraco, no cuidado dos doentes, e ao se dar um sábio conselho. Gregório Nazianzeno: Temo que não olheis a prática da misericórdia como obrigatória, mas como facultativa. Esta também era antes a minha opinião, contudo assustei-me com os bodes colocados à esquerda do Salvador, não por terem tirado o bem de outrem, mas por terem negligenciado Cristo nos pobres. João Crisóstomo: Com efeito, sem esmola, é impossível possuir o reino, pois uma fonte que retém suas águas se corrompe. E o mesmo acontece àqueles que conservam suas riquezas para si mesmos.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Ciência, razão e fé

Os aparentes conflitos entre ciência, filosofia e religião só podem surgir dentro de determinada situação cultural. Berdiaeff situa a filosofia entre a ciência e a religião, e observa:
“No conflito entre a religião e a filosofia, a verdade está do lado da religião, quando a filosofia pretende substituir-se-lhe em tudo o que diz respeito à salvação e à vida eterna; mas a verdade está do lado da filosofia, quando esta reivindica o seu direito a um conhecimento mais elevado que o saber constituído pelos elementos de conhecimento ingênuo que se misturam à religião” (BERDIAEFF, Nicolai. Meditações sobre a existência, p. 29).
É o que de alguma maneira defende Max Scheler, ao distinguir entre o saber cultural, o saber de salvação e o saber de ciência. Nenhum desses saberes pode substituir o outro. E completa o filósofo alemão: "culto não é aquele que sabe e conhece "muito" o modo de ser contingente das coisas (polymathia), ou aquele que pode prever e controlar ao máximo os fenômenos de acordo com leis - o primeiro é o erudito, o segundo, o investigador -, mas culto é aquele que se apropriou de uma estrutura pessoal, de um conjunto de esquemas ideais móveis, que, apoiados uns nos outros, formam a unidade de um estilo em função da intuição, do pensamento, da compreensão, da valoração e da forma de tratar o mundo e quaisquer coisas contingentes neles contidas..." (SCHELER, Max. Visão filosófica do mundo, p. 56).
E é ainda mais enfático na seguinte passagem: "Culto é aquele - dizia-me uma vez um homem sábio - em quem não se nota que estudou se tiver feito os estudos; e em quem não se nota que não estudou se não tiver feito os estudos” (SCHELER, Max. Visão filosófica do mundo, p. 46).


A condição humana diante do ser

Cada um de nós se reconhece na realidade do mundo, do seu próprio corpo e do seu espírito como capacidade de se realizar no mundo, que é uma responsabilidade sobre si: “o eu é algo de dado como fundante, que é expresso na realidade presente como potencialidade, no sentido de uma capacidade efetiva de realização seja do corpo como do espírito” (FABRO, Cornelio. Introduzione a San Tommaso, p. 181).
O interesse investigativo humano brota, como bem se sabe, do estupor, da admiração diante de alguma manifestação do ser, chamada de problema ou de mistério. Essa admiração está presente em toda atividade contemplativa: “o ente é o que primeiro cai sob o nosso intelecto”, repete com frequencia Santo Tomás. A prioridade do ente, enquanto partícipe do ato de ser, no processo humano de conhecimento é uma intuição fundamental do tomismo. E é pelos entes que se acede ao ser. Não é o nada, a falta de sentido, tão enfatizados no século XX, pode-se lembrar, com propriedade, aqui a obra de Sartre. Mas também o próprio Nietzsche, ou mesmo Hegel, se se retrocede um pouco mais.
Em outras palavras, contrariamente a todo niilismo, a experiência fundamental do homem é a experiência do ser. E a harmonia entre razão, ciência e fé depende desse ponto de partida comum à inteligência humana, pois o primeiro que cai sob o nosso intelecto é o ente...

Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira