sábado, 14 de agosto de 2010

Teses de Filosofia da Religião Elementos para a fundamentação metafísica do fenômeno religioso

A indagação filosófica a respeito da experiência religiosa lança suas raízes no profundo da consciência humana. A filosofia da religião encontra aí sua justificativa racional e existencial.
O que se propõe aqui é um conjunto de teses que poderiam servir de itinerário de reflexão filosófica sobre a religião. A forma de teses procura, antes de tudo, oferecer os elementos fundamentais de um enfoque mais sintético e ao mesmo tempo mais amplo do tema, quando se vê que, muitas vezes, a filosofia da religião se tem limitado seja a aspectos críticos, seja a aspectos fenomenológicos.
Se a atitude do pensador procura mostrar o que a religião não é, suas teses são sobretudo críticas. Se ela procura dizer o que a religião é, o faz ou de modo descritivo ou genético, ou seja, especulativo. No primeiro caso, temos uma fenomenologia; no segundo, uma metafísica da religião.
As teses aqui desenvolvidas seguem, pois, três perspectivas convergentes: a crítica, a fenomenológica e a metafísica. Somente o último grupo parece problemático para a filosofia. Contudo, no âmbito tomista, é necessário reconhecer que o fundamento da investigação filosófica sobre a religião supõe, antes, o caminho metafísico, que, em última instância, nos conduz ao estudo do ser. É, portanto, em vista dessa perspectiva metafísica que se apresentam as teses que se seguem.


Crítica da Religião

Por crítica, entende-se aqui o juízo de apreciação sobre determinado aspecto do conhecimento humano. Pode-se dizer que a crítica da religião remonta à própria origem da filosofia, todavia, depois de Descartes, ela ganhou contornos sistemáticos e tornou-se hoje elemento imprescindível para a compreensão do fenômeno religioso.

Teses críticas

I. A filosofia é ciência divina. E isto por duas razões: porque é própria de Deus e porque concerne ao divino . E divino é o princípio, completa o Estagirita, princípio que os antigos chamavam de arkhé e que os modernos chamam de fundamento (Grund). Assim, independentemente do pluralismo filosófico, a filosofia continua sendo a ciência da reflexão radical, dos fundamentos. De fato, não se pode pensar nada profundamente sem a filosofia. A busca de fundamento e de unidade é apanágio da filosofia.


II. A religião também é radical, mas vivência radical. Tem objetos que religiosamente não podem ser chamados de objetos, por ultrapassarem os limites da razão. Ademais, a religião nunca é exclusivamente racional, mas também não é irracional. A religião atinge a existência em sua totalidade. A transcendência e o mistério, em sentido existencial, são propriedades características da religião.

III. A filosofia da religião procura conjugar essas duas radicalizações, para oferecer ao homem as justificativas racionais da sua fé, integrando assim ciência e vida religiosa. O homem religioso tem um modo especial de estar no mundo, o que provoca a indagação do filósofo. Toda crítica religiosa nos oferece um caminho oportuno para purificar a religião de qualquer ingenuidade filosófica, do mesmo modo que nos leva a evidenciar, embora por processo negativo, o que lhe é específico e irredutível. Justamente por isso, impõe-se a reflexão sobre os elementos constitutivos do ato religioso.

IV. Assim sendo, tornam-se essenciais, para a filosofia da religião, as críticas modernas: primeiramente, a de Spinoza, na medida em que reduziu a religião à educação moral dos ignorantes; e, em seguida, a de Kant, porque, acentuando a postura spinozista, deu-lhe o estatuto de sua crítica . Em outras palavras, da imanência dogmática em Spinoza passamos à imanência crítica em Kant.

V. A filosofia da religião contemporânea depende sobretudo das premissas romântico-idealistas do século XIX. Essenciais são, portanto, as críticas de Hegel e de Schleiermacher. Aqui a crítica parte de um elemento fundamental, o princípio da ação: o espírito é dinâmico, e a idéia do princípio dinâmico da espiritualidade, que tem sua origem em Leibniz, guia tanto Hegel como Schleiermacher.

VI. Em um segundo momento da filosofia contemporânea, outro grupo de pensadores torna-se a referência negativa mais radical à religião: Feuerbach, Marx e Nietzsche. Feuerbach abriu o caminho da crítica da religião como alienação. Marx dá ao tema um tratamento econômico de natureza materialista-dialética, que justamente funda sua eficácia na cientificidade de seu sistema. Nietzsche torna-se mais radical do que Marx, na medida em que se liberta até mesmo dos modelos racionais e culturalmente cristãos presentes no pensamento marxista.

VII. Na linha de uma recuperação do valor religioso, aparecem como autores essenciais: Kierkegaard, que consegue reconduzir a religião à sua dimensão existencial; e, na Fenomenologia , Max Scheler, que, embora essencial, não é o único nesta importante corrente do pensamento contemporâneo. Na verdade, a filosofia da religião não somente incorpora as críticas fenomenológicas mas sobretudo começa daqui sua parte construtiva, positiva.



Fenomenologia da Religião

Por fenomenologia pretende-se indicar sobretudo a descrição de um fenômeno, o fenômeno religioso, ou seja, trata-se de mostrar como a religião aparece à consciência, a sua essência enquanto presente no pensamento.
Os aspectos fenomênicos da religião foram descritos por Mircea Eliade principalmente em O Sagrado e o Profano, que, por sua vez, se inspira na obra de Rudolf Otto, O Sagrado. O homem das sociedades tradicionais, observa aquele historiador, vive em um mundo sacralizado; o das sociedades modernas, em um mundo dessacralizado. Por outro lado, o espaço, o tempo, a religião cósmica e a religião existencial manifestam-se como elementos irredutíveis da experiência religiosa do homem.

Teses fenomenológicas

VIII. Para o homem religioso o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente distintas. Esta dimensão alia-se à percepção religiosa do tempo.

IX. O tempo também não é, para o homem religioso, nem homogêneo nem contínuo: há um tempo sagrado e um profano. O tempo sagrado é, por natureza, reversível, isto é, significa a reatualização de um evento sagrado acontecido nos primórdios.

X. Para o homem religioso, a natureza nunca é exclusivamente natural: está carregada de valor religioso. A natureza dessacralizada é descoberta recente, acessível apenas a uma minoria das sociedades modernas, especialmente cientistas. Quando Spinoza identifica Deus com a Natureza, tudo se torna natural.

XI. A existência do homem religioso é “aberta” para o mundo; vivendo, o homem religioso nunca está sozinho, pois ele participa do mundo. A abertura para o mundo permite ao religioso conhecer-se conhecendo o mundo – e esse conhecimento é precioso para ele, porque é conhecimento religioso, refere-se ao Ser. Essa abertura ao ser é o caminho da santificação da existência humana.

XII. Os sem-religião, em sua maioria, não estão, propriamente falando, livres dos comportamentos religiosos, das teologias e das mitologias. Estão, às vezes, entulhados por todo um amontoado mágico-religioso, mas degradado até a caricatura e, por esta razão, dificilmente reconhecível. Jung nos mostra que é impossível suprimir a experiência religiosa. Afirma ainda Jung que as tentativas de eliminar a função religiosa geram uma resposta compensatória e encoberta, seja na vida privada, seja na vida social.




Metafísica da Religião

A Metafísica investiga os fundamentos do ente, é o saber do ente enquanto tal. Ora, a busca da causa do fenômeno religioso é a metafísica da religião. Para explicá-lo, a Metafísica oferece-nos muitos princípios, mas todos eles deveriam conduzir ao ser como fundamento do ente. O ser que emerge como ato, e, portanto, como ato de todo fenômeno, é o princípio que funda a metafísica da religião.

Teses metafísicas

XIII. Pode-se então demonstrar que o homem é naturalmente religioso. O homem realiza atos que são estritamente religiosos (pelas teses VIII-XI), ou seja, irredutíveis a qualquer outra manifestação humana. Ora, como todo efeito há de ter uma causa proporcionada, deve-se concluir que o homem é naturalmente religioso. Ademais, o homem tende, por natureza, ao Sumo Bem, que é Deus, objeto da religião. Como nenhuma tendência da natureza pode ser frustrada pela própria natureza, deve-se dizer que o homem tende a Deus e, conseqüentemente, à religião.

XIV. A religião é a santificação da vida, por isso sempre inclui uma ética, embora a ultrapasse. A vida como um todo é suscetível de ser santificada: é imanente e transcendente, como o próprio Ser e a vivência que dele temos. A vida, enquanto desenrolar da existência humana, é participação que transcende a própria imanência em que ela se encontra. Na busca da santidade perdida e de uma nova salvação para o homem, erra Spinoza, quando unifica o real através da imanência do ser, porque a santidade é a aplicação que a alma faz de si mesmo, de seus pensamentos, de todos os seus atos a Deus , portanto supõe a transcendência.

XV. A religião se manifesta pelo culto, tanto externo como interno. Assim, a riqueza do culto exprime a riqueza das vivências e da própria manifestação divina. Mas a religião, segundo Santo Tomás de Aquino, tem como atos principais seus próprios atos internos e como secundários, os atos externos, ordenados aos internos.

XVI. O homem profano descende do homo religiosus e não pode anular sua própria história. Ademais, não existe um homem totalmente profano, conforme o já citado Mircea Eliade. Um homem exclusivamente racional também é uma abstração: jamais o encontramos na realidade. Sua abertura ao Infinito resiste a qualquer reducionismo racionalista. São significativas neste momento as palavras de Kant, no final da Crítica da Razão Prática: “Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais freqüentemente e com maior assiduidade delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim.” Se a ciência pode avançar, e tem avançado muito, sua dependência do mundo sensível é o seu limite; em contrapartida, a moral, embora avance lentamente, nela se descortina o Infinito, que se apresenta como ulterioridade. Aqui está a diferença, em matéria religiosa, entre tomismo e kantismo.



Conclusão

Os elementos apresentados como tópicos de uma filosofia da religião que reconheça a metafísica como ciência das causas primeiras supõem o ser como fundamento do ente. Mesmo admitindo-se uma diferença entre o método fenomenológico, que domina a pesquisa filosófica no panorama contemporâneo, e a investigação metafísica, o tomismo absorve a maioria das considerações da Fenomenologia na descrição dos fenômenos. A possibilidade de sintetizar posturas aparentemente antagônicas é, também neste caso, um desafio para a filosofia. Ora, a possibilidade de toda síntese está na descoberta de um princípio anterior aos elementos que se opõem. Em si mesmo, isso não é tarefa fácil e que se torna imponente quando deve ser transferida para o plano conceitual que a filosofia exige:

"Os dois, nós procuramos a verdade; tu, fora, na vida; eu, dentro
No coração; e assim cada um está seguro de a encontrar.
Se o olho é são, ele encontra fora o Criador;
Se o coração é sadio, ele reflete interiormente o mundo."

"Wahrheit suchen wir beide, du aussen im Leben, ich innen
In dem Herzen, und so findet sie jeder gewiss.
Ist das Auge gesund, so begegnet es aussen dem Schöpfer;
Ist es das Herz, dann gewiss spiegelt es innen die Welt."

A filosofia contempla a intuição do poeta, mas persegue outro caminho, pois, propriamente falando, a filosofia não intui; a filosofia abstrai, julga, argumenta, e é, por isso mesmo, aproximativa. É o acercamento do ser que se esconde. Todo o restante da investigação humana depende desse acercar-se e esconder-se do ser para nós. Todo fruto positivo do rigor, isto é, toda conquista rigorosa da filosofia, de toda crítica, é, em relação ao ser que se manifesta, mera aproximação: "O ser é o prodígio de todos os prodígios, mas não é um prodígio, porque é o mais evidente. É também o que há de mais profundo, mais insondável porque, para nós, o ente veio de longe e continuamente vem de longe, vem do nada" .




REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ARISTÓTELES, Metafísica. Porto Alegre: Globo, 1969.
BOSSERT, A. Histoire de la Littérature allemande. Paris: Hachette, 1907.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FABRO, Cornelio.Libro dell'esistenza e della libertà vagabonda. Casale Monferrato: Piemme, 2000.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 1989.
_______. Werke in Zehn Bänden. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschft, 1983. Vol. 6.
JUNG, Karl Gustav. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991.
OTTO, Rudolf. O Sagrado. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007.
TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologiae. Roma: Ed. Paulinae, 1962.
VAN DER LEEUW, Gerardus. Fenomenologia della Religione. Turim: Boll. Boringheri, 1992.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Tradução do Comentário de Santo Tomás de Aquino ao Evangelho do XIX Domingo do Tempo Comum, ano C

O Evangelho (Lc 12, 32-48)
Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos:
32'Não tenhais medo, pequenino rebanho,
pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino.
33Vendei vossos bens e dai esmola.
Fazei bolsas que não se estraguem,
um tesouro no céu que não se acabe;
ali o ladrão não chega nem a traça corrói.
34Porque onde está o vosso tesouro,
aí estará também o vosso coração.
35Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas.
36Sede como homens que estão esperando
seu senhor voltar de uma festa de casamento,
para lhe abrirem, imediatamente, a porta,
logo que ele chegar e bater.
37Felizes os empregados que o senhor
encontrar acordados quando chegar.
Em verdade eu vos digo:
Ele mesmo vai cingir-se, fazê-los sentar-se à mesa
e, passando, os servirá.
38E caso ele chegue à meia-noite ou às três da madrugada,
felizes serão, se assim os encontrar!
39Mas ficai certos: se o dono da casa
soubesse a hora em que o ladrão iria chegar,
não deixaria que arrombasse a sua casa.
40Vós também ficai preparados!
Porque o Filho do Homem vai chegar
na hora em que menos o esperardes'.
41Então Pedro disse: 'Senhor,
tu contas esta parábola para nós ou para todos?'
42E o Senhor respondeu:
'Quem é o administrador fiel e prudente que o senhor
vai colocar à frente do pessoal de sua casa
para dar comida a todos na hora certa?
43Feliz o empregado que o patrão, ao chegar,
encontrar agindo assim!
44Em verdade eu vos digo: o senhor lhe confiará a
administração de todos os seus bens.
45Porém, se aquele empregado pensar:
'Meu patrão está demorando',
e começar a espancar os criados e as criadas,
e a comer, a beber e a embriagar-se,
46o senhor daquele empregado chegará num dia inesperado
e numa hora imprevista,
ele o partirá ao meio
e o fará participar do destino dos infiéis.
47Aquele empregado que, conhecendo a vontade do senhor,
nada preparou, nem agiu conforme a sua vontade,
será chicoteado muitas vezes.
48Porém, o empregado que não conhecia essa vontade
e fez coisas que merecem castigo,
será chicoteado poucas vezes.
A quem muito foi dado, muito será pedido;
a quem muito foi confiado, muito mais será exigido!



O comentário de Santo Tomás de Aquino
em glosa com os Padres da Igreja: Catena aurea in Lucam 12, 32-48
[tradução incompleta, por ora somente o início]

A Glosa: Depois de ter banido do coração de seus discípulos a preocupação com as coisas terrenas, o Senhor extirpa daí o medo que é o princípio das inquietudes vãs: “Não temais, pequeno rebanho”. Teofilacto: o Senhor chama de pequeno rebanho aqueles que querem ser seus discípulos, seja em razão da pobreza voluntária que abraçaram, seja porque estão abaixo dos anjos, cuja natureza é incomparavelmente superior à nossa. Beda: O Senhor chama ainda os eleitos de pequeno rebanho, seja em comparação com o grande número dos réprobos, seja ainda por causa do amor dos eleitos pela humildade. Cirilo: Ele lhes mostra a razão que deve banir de seus corações qualquer medo: “Porque aprouve a vosso Pai vos dar o seu reino”. Como se lhes dissesse: como aquele que vos destina tão preciosa herança poderia se recusar de vos tratar com bondade? Pois esse rebanho, por pequeno que seja pela natureza, pelo número, pela glória, contudo foi a ele que a bondade do Pai ofereceu a herança dos espíritos celestes, isto é, o reino dos céus. Se vós quereis possuir o reino dos céus, desprezai as riquezas da terra: “Vendei aquilo que tendes!” Beda: O Senhor quer-lhes dizer: Não temais, porque, ao combaterdes pelo reino de Deus, o necessário nunca vos faltará; vendei mesmo o que tendes, conselho que é nobremente praticado por aquele que, não contente de ter feito, por amor a Deus, o sacrifício de todos os seus bens, trabalha em seguida com suas próprias mãos para satisfazer às suas necessidades e poder ainda fazer esmola. Crisóstomo: Não há pecado que a esmola não possa abolir: é um antídoto eficaz para todas as feridas. Ora, não se faz esmola somente ao se doar dinheiro, mas também por meio de obras de caridade, na defesa do fraco, no cuidado dos doentes, e ao se dar um sábio conselho. Gregório Nazianzeno: Temo que não olheis a prática da misericórdia como obrigatória, mas como facultativa. Esta também era antes a minha opinião, contudo assustei-me com os bodes colocados à esquerda do Salvador, não por terem tirado o bem de outrem, mas por terem negligenciado Cristo nos pobres. João Crisóstomo: Com efeito, sem esmola, é impossível possuir o reino, pois uma fonte que retém suas águas se corrompe. E o mesmo acontece àqueles que conservam suas riquezas para si mesmos.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Ciência, razão e fé

Os aparentes conflitos entre ciência, filosofia e religião só podem surgir dentro de determinada situação cultural. Berdiaeff situa a filosofia entre a ciência e a religião, e observa:
“No conflito entre a religião e a filosofia, a verdade está do lado da religião, quando a filosofia pretende substituir-se-lhe em tudo o que diz respeito à salvação e à vida eterna; mas a verdade está do lado da filosofia, quando esta reivindica o seu direito a um conhecimento mais elevado que o saber constituído pelos elementos de conhecimento ingênuo que se misturam à religião” (BERDIAEFF, Nicolai. Meditações sobre a existência, p. 29).
É o que de alguma maneira defende Max Scheler, ao distinguir entre o saber cultural, o saber de salvação e o saber de ciência. Nenhum desses saberes pode substituir o outro. E completa o filósofo alemão: "culto não é aquele que sabe e conhece "muito" o modo de ser contingente das coisas (polymathia), ou aquele que pode prever e controlar ao máximo os fenômenos de acordo com leis - o primeiro é o erudito, o segundo, o investigador -, mas culto é aquele que se apropriou de uma estrutura pessoal, de um conjunto de esquemas ideais móveis, que, apoiados uns nos outros, formam a unidade de um estilo em função da intuição, do pensamento, da compreensão, da valoração e da forma de tratar o mundo e quaisquer coisas contingentes neles contidas..." (SCHELER, Max. Visão filosófica do mundo, p. 56).
E é ainda mais enfático na seguinte passagem: "Culto é aquele - dizia-me uma vez um homem sábio - em quem não se nota que estudou se tiver feito os estudos; e em quem não se nota que não estudou se não tiver feito os estudos” (SCHELER, Max. Visão filosófica do mundo, p. 46).


A condição humana diante do ser

Cada um de nós se reconhece na realidade do mundo, do seu próprio corpo e do seu espírito como capacidade de se realizar no mundo, que é uma responsabilidade sobre si: “o eu é algo de dado como fundante, que é expresso na realidade presente como potencialidade, no sentido de uma capacidade efetiva de realização seja do corpo como do espírito” (FABRO, Cornelio. Introduzione a San Tommaso, p. 181).
O interesse investigativo humano brota, como bem se sabe, do estupor, da admiração diante de alguma manifestação do ser, chamada de problema ou de mistério. Essa admiração está presente em toda atividade contemplativa: “o ente é o que primeiro cai sob o nosso intelecto”, repete com frequencia Santo Tomás. A prioridade do ente, enquanto partícipe do ato de ser, no processo humano de conhecimento é uma intuição fundamental do tomismo. E é pelos entes que se acede ao ser. Não é o nada, a falta de sentido, tão enfatizados no século XX, pode-se lembrar, com propriedade, aqui a obra de Sartre. Mas também o próprio Nietzsche, ou mesmo Hegel, se se retrocede um pouco mais.
Em outras palavras, contrariamente a todo niilismo, a experiência fundamental do homem é a experiência do ser. E a harmonia entre razão, ciência e fé depende desse ponto de partida comum à inteligência humana, pois o primeiro que cai sob o nosso intelecto é o ente...

Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira

sábado, 31 de julho de 2010

Tradução do Comentário de Santo Tomás de Aquino ao Evangelho do XVIII Domingo do Tempo Comum, ano C

Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira


O Evangelho (Lc 12,13-21)

Naquele tempo, alguém, do meio da multidão, disse a Jesus: «Mestre, diz a meu irmão que reparta a herança comigo». Jesus respondeu-lhe: «Amigo, quem Me fez juiz ou árbitro das vossas partilhas?» Depois disse aos presentes: «Vede bem, guardai-vos de toda a avareza: a vida de uma pessoa não depende da abundância dos seus bens». E disse-lhes esta parábola: «O campo dum homem rico tinha produzido excelente colheita. Ele pensou consigo: ‘Que hei-de fazer, pois não tenho onde guardar a minha colheita? Vou fazer assim: Deitarei abaixo os meus celeiros para construir outros maiores, onde guardarei todo o meu trigo e os meus bens. Então poderei dizer a mim mesmo: Minha alma, tens muitos bens em depósito para longos anos. Descansa, come, bebe, regala-te’. Mas Deus respondeu-lhe: ‘Insensato! Esta noite terás de entregar a tua alma. O que preparaste, para quem será?’ Assim acontece a quem acumula para si, em vez de se tornar rico aos olhos de Deus».



O comentário de Santo Tomás de Aquino
em glosa com os Padres da Igreja: Catena aurea in Lucam 12, 13-21

Ambrósio: Todos os ensinamentos que precedem têm por finalidade nos encorajar a sofrer pelo nome do Senhor, ou pelo desprezo da morte, ou pela esperança da recompensa, ou pela ameaça dos suplícios eternos que nenhuma misericórdia amenizará. Ora, como a avareza é uma fonte frequente de tentações para a virtude, Nosso Senhor quer destruí-la até seu germe em nossa alma e, para ilustrar o preceito que ele nos dá, ele oferece este exemplo: «Então, do meio da multidão, alguém lhe diz: Mestre, dizei a meu irmão de dividir a nossa herança ». Teofilacto: Esses dois irmãos disputavam para dividir a herança paterna, e acontecia que um tentava fraudar o outro. Ora, o Salvador, querendo nos ensinar não abaixar nosso espírito até as coisas da terra, rejeita o pedido daquele que lhe pedia para dividir a herança: «Mas Jesus lhe respondeu: Homem, quem me constituiu para vos julgar e fazer vossa partilha?» Beda: Esse homem quer inquietar com a partilha de terras o Mestre que veio nos inspirar o gosto pelas alegrias e pela paz do céu ; e é por isso que Nosso Senhor o chama de homem, ou seja, no mesmo sentido de suas outras palavras: «com efeito, se há entre vós ciúmes e contendas, não sois carnais e vos portais como homens?» Cirilo: Quando o Filho de Deus se dignou a se fazer semelhante a nós, Deus, seu Pai, o constituiu rei e príncipe sobre a santa montanha de Sião, para anunciar seus divinos mandamentos. Ambrósio: É, pois, com razão que ele se recusa a se ocupar dos interesses da terra, ele que desceu à terra para nos ensinar as coisas do céu; ele se recusa a ser o juiz das contendas e o árbitro dos bens da terra, ele a quem Deus deu o poder de julgar os vivos e os mortos assim como o juízo definitivo sobre os méritos dos homens. É necessário considerar aqui não o que se pede mas a quem se pede, e não tentar desviar para coisas medíocres aquele cujo espírito se aplica a coisas superiores. Esse irmão merecia, pois, a resposta que lhe deu o Salvador, pois queria que o dispensador dos bens celestes se ocupasse dos interesses perecíveis da terra. Acrescentemos, ademais, que não é por intervenção de um juiz, mas sim por afeto, que um bem patrimonial deve ser partilhado entre irmãos. Enfim, os homens devem almejar e esperar o patrimônio da imortalidade mais do que o das riquezas.
Beda: Nosso Senhor aproveita a ocasião dessa pergunta despropositada para munir o povo e seus discípulos de preceitos e exemplos contra a peste da avareza: «E dirigindo-se a todos os que estavam presentes ele lhes disse: ‘Guardai-vos com cuidado de toda avareza’». Notai estas palavras: ‘De toda avareza’, porque as ações têm uma aparência de retidão, mas sua intenção viciada não escapa ao olhar penetrante do juiz interior. Cirilo: Ou melhor ainda: «Guardai-vos de toda avareza, grande ou pequena», pois a avareza é totalmente inútil ao testemunho do Senhor: «Construireis casas magníficas, mas não as habitareis» (Am 5, 11.) E alhures: «Dez jeiras de vinha produzirão apenas uma medida, a terra não renderá mais do que a décima parte da semeadura» (Is 5, 10). O Salvador oferece uma outra razão sobre a inutilidade da avareza: «Mesmo na abundância, a vida de um homem não depende dos bens que ele possui». Teofilacto: Ele condena aqui os vãos motivos dos avaros, que se veem enchendo-se de riquezas como se fossem viver para sempre. Mas a opulência pode prolongar vossa vida? Por que, pois, vos deveis devotar a preocupações certas por um repouso que não é nada certo? Pois é duvidoso que atingireis a velhice para a qual ajuntais tesouros.
Teofilacto: Nosso Senhor confirma a verdade que ele está ensinando, a saber, que a abundância de riquezas não pode prolongar a vida humana, com as seguintes palavras: «Havia um homem rico cujas terras lhe tinham trazido muitos frutos». Basílio: Nosso Senhor não diz que esse homem quis fazer algum bem com suas grandes riquezas, e torna mais evidente a longanimidade de Deus, que estende sua bondade mesmo aos maus e faz cair a chuva tanto sobre os justos quanto sobre os culpados. Ora, como esse homem testemunha seu reconhecimento a seu benfeitor? Ele esquece a natureza que lhe é comum a todos os homens e não pensa que tem a obrigação de distribuir aos necessitados seu supérfluo; seus celeiros estavam sobrecarregados pela abundância de suas colheitas, mas seu coração insaciável não estava ainda cheio. Ele não queria dar nem seus frutos antigos, tal era a sua avareza; ele não podia nem recolher os novos, de como eram abundantes, e sua prudência era imperfeita e suas preocupações estéreis: «E ele se entretinha em seus pensamentos: Que farei? pois não tenho onde guardar minha colheita». Ele se inquieta como os pobres. Não é acaso assim que diz o indigente : que farei? Como conseguir alimento e o que vestir? Assim também é a linguagem do rico, ele é oprimido pelo peso das suas riquezas, cujos celeiros transbordam e donde nada sai para o alívio dos miseráveis, semelhantes aos ávidos e famintos, que mais amam ser vítimas de sua voracidade do que deixar os restos de suas mesas aos indigentes.
Gregório: Ó inquietações, que sois o fruto da abundância e da saciedade! Ao dizer «Que farei?» o rico não mostra claramente como ele está oprimido pela realização de seus desejos, e que ele geme, por assim dizer, sob o fardo de seus grilhões? Basílio: Seria mais fácil dizer: «abrirei meus celeiros, reunirei todos os pobres... », mas não, um só pensamento o preocupa, e não é o de distribuir seus celeiros transbordantes, mas o de armazenar sua nova colheita: «Eis, diz ele, o que farei: destruirei meus celeiros». Vós fazeis uma boa ação! Esses celeiros iníquos merecem ser destruídos, donde nunca saiu consolação alguma para alguém. Ele acrescenta: «E farei outros ainda maiores». E se acontecer que vós o enchais de novo, vós os destruireis novamente? Mas que loucura nesse trabalho sem fim! Vossos celeiros, se quereis, devem ser as casas dos pobres. Vós me direis : a quem faço mal, guardando o que me pertence? E o rico acrescenta: «Eu reunirei aí o produto das minhas terras e todos os meus bens ». Dizei-me, quais são os bens que propriamente tendes? De qual fonte vós os haveis tirado para trazê-los a esta vida? Pareceis ao homem que, chegando antes da hora de um espetáculo, impedia os outros de aí chegar, pretendendo ter a alegria exclusiva daquilo que é destinado ao público. Os ricos olham como seus pertences os bens de que se apropriaram, e que eram propriedade comum de todos os homens. Se cada qual não tomasse senão o que é suficiente para suas necessidades, abandonando todo o supérfluo aos indigentes, não haveria mais nem rico nem pobre.
Cirilo: Escutai uma outra palavra insensata desse rico : « Eu reunirei todo o produto das minhas terras e todos os meus bens ». Não parece que ele não é agradecido a Deus por suas riquezas e que elas são o fruto de seus trabalhos? Basílio: Mas, se reconheceis que os recebestes de Deus, seria Deus injusto distribuindo os bens de modo desigual? Se estais na abundância e um outro na pobreza, não será porque vos é dada a ocasião de exercer um ato de generosidade meritória e aquele pobre de receber por um dia o preço glorioso de sua paciência? Ora, não sois verdadeiramente um espoliador, guardando como vossa propriedade esses bens que recebestes para que os outros deles participem? O pão que guardais pertence àquele que morre de fome; essa túnica que encerrais em vosso armário pertence a um outro que está despido; esse calçado que estraga em sua casa pertence àquele que caminha a pés nus; esse dinheiro que enterrastes pertence aos indigentes. Cometeis tantas injustiças quantos são os benefícios que podeis repartir. Crisóstomo: Mas engana-se aquele que olha como bens verdadeiros coisas que são absolutamente indiferentes. Há, com efeito, coisas que são essencialmente boas, outras que são essencialmente más, outras, enfim, que estão no meio-termo. A castidade e a humildade e as outras virtudes são verdadeiros bens e tornam bom aquele que as pratica. Os vícios opostos a essas virtudes são essencialmente maus e tornam essencialmente mau aquele que a eles se entregam. Outras coisas estão no meio-termo, como as riquezas, pois tanto servem para dar esmola, por exemplo, como são instrumentos para o mal, isto é, para a avareza. Até mesmo a pobreza, pois conduz tanto à blasfêmia quanto à verdadeira sabedoria, consoante as disposições interiores das pessoas.
Cirilo: Estes não são celeiros permanentes, mas de duração passageira, que o rico constrói, e o que é uma loucura mais notável é que ele se promete uma vida longa: «E direi à minha alma: tu, alma querida, tens muitos bens de reserva para muitos anos». Ó rico, é verdade, teus celeiros transbordam de frutos, mas pode te garantir muitos anos de vida? Atanásio: Aquele que vive como se a cada dia fosse morrer, em razão da incerteza natural da vida, não cometerá pecado, pois o medo da morte o previne contra a atração sedutora das volúpias; mas, ao contrário, aquele que se promete uma vida longa, aspira aos prazeres da carne. Escutai, com efeito, este rico: «Repousa, minha alma, come, bebe e regala-te», isto é, faze uma refeição suntuosa. Basílio: Ó rico, tu te esqueces dos bens da alma e lhe nutres com os alimentos do corpo! Se a alma é virtuosa, ela é fecunda em boas obras; se ela se une a Deus, ela então possui grandes bens, e desfruta de alegria verdadeira. Mas como és todo carnal e escravo das tuas paixões, teus desejos e teus clamores vêm todos do corpo e não da alma. Crisóstomo: Não convém mergulhar nas delícias, engordar o corpo e enfraquecer a alma; nem lhe impor um fardo pesado, como também envolvê-la nas trevas e cobri-la com um véu espesso. Quando o homem vive nas delícias, a alma que deveria ser a rainha, torna-se escrava, e o corpo que deveria obedecer, domina e comanda. Os alimentos são necessários ao corpo, mas não as delícias: é necessário alimentá-lo mas não debilitá-lo e enfraquecê-lo. Ora, as delícias são nocivas tanto ao corpo quanto à alma; mesmo que sejam fortes, elas o tornam fracos: à saúde, elas fazem suceder a doença; à agilidade, o peso; à beleza, a feiúra ; à juventude, a velhice prematura.
Basílio: Esse homem foi deixado livre para deliberar sobre todas essas coisas, e para dar a conhecer suas intenções, a fim de que a sua avareza insaciável recebesse o justo castigo que ela merecia. Com efeito, enquanto ele fala assim no segredo de sua alma, seus pensamentos e suas palavras são julgadas no céu, donde lhe vem esta resposta: «Insensato! Nesta noite mesma a tua alma será cobrada». Escutai o termo insensato que vossa loucura mereceu ; e não foram os homens, mas o próprio Deus que assim vos chamou. Gregório: Ele foi levado nessa noite mesma, ele que se prometia longos anos ; enquanto tinha reunido bens consideráveis para um grande número de anos, ele não vê nem mesmo o dia seguinte. Crisóstomo: «Reclamar-se-á a tua alma» etc. Talvez algumas potências terríveis tenham sido enviadas para lhe reclamar a sua alma, pois se não podemos passar de uma cidade a outra sem um guia, mais ainda alma, separada do corpo, terá necessidade de ser conduzida por outros para as regiões desconhecidas da outra vida. É por isso que a alma, prestes a deixar o corpo, resiste com força e entra nas profundezas de seu corpo, pois sempre a consciência dos nossos pecados nos faz sentir seu aguilhão. Mas é sobretudo quando devemos ser conduzidos ao terrível tribunal do justo Juiz que a multidão dos nossos crimes vêm se postar sob nossos olhos e gelar nossa alma de terror. Como os prisioneiros que estão sempre em angústia, sobretudo quando lhes chega o momento de se apresentar diante de seu juiz, assim a alma humana fica entristecida e torturada pela lembrança de seus pecados, bem mais ainda quando ela deixou o corpo. Gregório: Essa alma foi arrebatada durante a noite, isto é, na obscuridade do coração; ela é separada do corpo durante a noite, porque ela fechou os olhos à luz da razão que lhe teria podido fazer prever os suplícios que aos quais se dispunha a sofrer.
Deus acrescenta: «E para quem ficará o que ajuntaste?» Crisóstomo : pois deixareis todos esses bens, e não somente não tirareis nenhuma vantagem daí, mas sereis oprimidos pelo peso de vossos pecados. Todas as riquezas que haveis reunido passarão logo às mãos de vossos inimigos, mas sereis vós a prestar contas. «Assim acontece aos que ajuntam tesouros para si, mas não é rico consoante Deus». Beda: É um insensato que deve ser roubado durante a noite. Aquele que quiser ser rico diante de Deus, não ajunte tesouros para si, mas distribua aos pobres os que possuir. Ambrósio: Por que juntar riquezas das quais não se faz nenhum emprego? Podemos acaso ver como a nós pertencentes coisas que não levamos conosco? Somente a virtude é companheira dos que morrem, somente a misericórdia nos segue e nos conduz, após a morte, aos tabernáculos eternos.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Comentários de Santo Tomás à Sagrada Escritura: Mt 5, 1-3

Formam um total de dez obras: Expositio in Iob (1261-64); In psalmos Davidis lectura (1271-73); Expositio in Cantica Canticorum (perdido); Expositio in Isaiam prophetam (1269-74); Expositio in Ieremiam prophetam (1267-68);Expositio in threnos Ieremiae prophetae (1264-69); Catena aurea super quattuor Evangelia (1261-64; depois de 1264); Expositio (lectura) in Evangelium sancti Matthaei (1256-59). Expositio (lectura) in Evangelium sancti Ioannis (1269-72); Expositio in sancti Pauli apostoli epistolas (1259-65; 1272-73).
            A Catena Aurea. Entre os muitos comentários de Santo Tomás à Sagrada Escritura, encontra-se a Cadeia de Ouro, ou a Glossa continua super Evangelia, que, como seu nome indica, é uma glosa que visa a mostrar a exegese dos Padres sobre os versículos dos quatro evangelhos. É uma brilhante seleção temática dos grandes mestres da patrística. O texto revela não somente a intimidade de Tomás com esses mestres mas também sua sensibilidade de unir e lançar luzes sobre passagens evangélicas que poderiam passar despercebidas pelos leitor. Exemplo disso é a seleção que ele faz para os versículos 1-3 do capítulo 5 do evangelho de Mateus, no início do Sermão da Montanha. O detalhe, observado pelos Padres e reportado por Tomá,s é a situação de Jesus: em uma montanha, sentado para ensinar. Eis a tradução parcial dessa passagem: 

(...) São João Crisóstomo: Ele sentou-se não no meio das cidades e das praças públicas, mas sobre uma montanha e na solidão; ele ensinou-nos assim a nada fazer por ostentação e a fugir das aglomerações, sobretudo quando devemos tratar de coisas importantes.[1] (...) São João Crisóstomo: Ele sobe a essa montanha primeiramente para cumprir a profecia de Isaías: « Subi ao topo da montanha »; em seguida, para nos ensinar que é necessário habitar a cumeeira das virtudes espirituais para ser digno de ensinar ou de escutar os oráculos da justiça de Deus, pois o que habita somente o vale não pode falar do alto da montanha. Se ficais sobre a terra, falai sobre as coisas da;  se quereis falar do céu, elevai-vos até o céu. Ele sobe, pois, à montanha para nos advertir que todo homem que queira penetrar nos mistérios da verdade, deve subri esta montanha da Igreja da qual o profeta disse : « A montanha de Deus é uma montanha fértil » (Ps 67, 16).  Santo Hilário: Ou melhor, ele sobe à montanha porque é das alturas de sua majestade que ele ocupa com seu Pai que ele nos propõe os celestes ensinamentos da vida cristã. Santo Agostinho: Enfim, ele sobe à montanha para nos fazer compreender que os mandamentos de Deus que ele tinha dado pelos profetas ao povo judeu, povo que ele precisava deter pelo medo, eram menos perfeitos do que as leis que ele ia dar por seu Filho a um povo que ele queria libertar pelo amor. « Assim que ele se sentou, seus discípulos se aproximaram dele ». São Jerônimo: Ele fala sentado e não de pé, porque eles eram incapazes de o compreender no brilho de sua majestade. Santo Agostinho: ou, ainda, ele fala sentado porque sua dignidade de doutor e mestre o exigia. Seus discípulos aproximaram-se dele : assim, aqueles cujo coração era mais próximo do seguimento de seus preceitos estavam também corporalmente mais próximos da sua pessoa. Rabano: No sentido místico, o Senhor sentado é a figura da sua encarnação, pois, se ele não se tivesse encarnado, o gênero humano não teria podido se aproximar dele.

(...) Chrysostomus super Matth. Omnis artifex secundum professionem suam, opportunitatem operis videns gaudet: carpentarius enim si viderit arborem bonam, concupiscit eam praecidere ad opus artificii sui; et sacerdos, cum viderit Ecclesiam plenam, gaudet animus eius et delectatur ut doceat. Sic et dominus videns magnam congregationem populi, excitatus est ad docendum; unde dicit: videns autem turbas Iesus, ascendit in montem. (...) Chrysostomus in Matth. Per hoc autem quod non in civitate et foro, sed in monte et solitudine sedit, erudivit nos nihil ad ostentationem facere, et a tumultibus ascendere, et praecipue cum philosophandum est ac de rebus seriis disserendumRemigius. Hoc enim sciendum est, quod tria refugia legitur dominus habuisse: navim, montem et desertum; ad quorum alterum, quotiescumque a turbis opprimebatur, conscendebat. Hieronymus in Matth. Nonnulli autem simpliciorum fratrum putant dominum ea quae sequuntur in oliveti monte docuisse; quod nequaquam ita est: ex praecedentibus enim et sequentibus in Galilaea monstratur locus, quem putamus esse vel Thabor, vel quemlibet alium montem excelsum. Chrysostomus super Matth. Ascendit autem in montem: primo quidem ut impleret prophetiam Isaiae dicentis: super montem ascende tu; deinde ut ostendat quoniam in altitudine spiritalium virtutum consistere debet qui docet Dei iustitiam, pariter et qui audit: nemo enim potest in valle stare et de monte loqui. Si in terra stas, de terra loquere; si autem de caelo loqueris, in caelo consiste. Vel ascendit in montem, ut ostendat quod omnis qui vult discere mysteria veritatis, in montem Ecclesiae debet ascendere; de quo propheta: mons Dei, mons pinguisHilarius in Matth. Vel ascendit in montem, quia in paternae maiestatis celsitudine positus, caelestis vitae praecepta constituitAugustinus de Serm. Dom. Vel ascendit in montem, ut significet, quia minora erant praecepta iustitiae quae a Deo data sunt per prophetas populo Iudaeorum, quem timore adhuc alligari oportebat; per filium autem suum maiora populo quem caritate iam convenerat liberari. Sequitur et cum sedisset, accesserunt ad eum discipuli eius. Hieronymus. Ideo autem non stans, sed sedens, loquitur, quia non poterant eum intelligere in sua maiestate fulgentem. Augustinus de Serm. Dom. Vel quod sedens docebat, pertinet ad dignitatem magistri. Accesserunt autem ad eum discipuli eius, ut audiendis verbis illius hi essent etiam corpore viciniores qui praeceptis implendis animo appropinquabant. Rabanus. Mystice autem sessio domini, incarnatio eius est: quia nisi dominus incarnatus esset, humanum genus ad eum accedere non potuisset.


[1] TOMÁS DE AQUINO. Catena aurea: Catena in Mattheum, cap. 5 l. 1. Tradução livre de Carlos Frederico Calvet. Para o  texto latino: http://www.corpusthomisticum.org/iopera.html: 27/07/10.